O curso de capacitação online de colaboradores da Cáritas Arquidiocesana de Campinas se estendeu por mais dois dias, em função da morte de um dos moradores da Casa Santa Dulce dos Pobres, na primeira semana do curso. A palestra sobre Paulo Freire, e sua relação com a metodologia aplicada nos abrigos da Cáritas, foi o tema desta semana (29/09), com Leonardo Duart Bastos, coordenador da Casa Santa Dulce dos Pobres.

Leo começa explicando que tudo apresentado até agora no curso – história da Cáritas, história da política de assistência social, comunicação não violenta, justiça restaurativa, redução de danos e saúde mental – faz parte de uma metodologia dialógica, que seria explicada depois. Antes, pede para Angélica, monitora da Casa Santa Clara, que explique, na prática, o quanto Paulo Freire está presente nas diretrizes da Casa.

Angélica conta que sempre trabalha com a autonomia das mulheres, ou seja, desde que elas entram na casa, essa autonomia é potencializada em cada ato, cada momento de convivência, seja nas conversas sobre o projeto de vida, seja nas regras e combinados ou nas assembleias. Quando chegam, muitas estão ainda sem controle da própria autonomia. O primeiro passo, então, é acolher as demandas, sejam elas de educação, saúde, documentos, sempre deixando que elas opinem sobre o que priorizar.

“A gente oferta, a gente ajuda, mas incentiva que elas busquem autonomia. Um monitor, por exemplo, pode até ensinar como lidar com um caixa eletrônico, por exemplo, mas elas vão aprender pra fazer isso sozinhas depois. A todo momento elas são as protagonistas da vida delas”, diz Angélica.

Leo lembra, então, os pilares sobre os quais essas diretrizes estão alicerçadas – protagonismo, autonomia e transparência, que têm relação direta com a ética profissional fundamentada em Paulo Freire. Sobre a transparência, Angélica lembra que “não fazemos nada sem elas saberem. O relatório que é pedido sobre elas é lido e sempre ouvimos o que elas acham, entrando num consenso”.

Leo continua: -“Acabamos de sair da ditatura, o Brasil foi durante tempos colônia de Portugal, temos enraizado em nossa história, em nossa cultura, o hábito de alguém fazer por nós ou a gente fazer pelo outro. Falando de saúde, por exemplo, o paciente é submisso ao saber do doutor. Paulo Freire questiona justamente essa relação de poder entre o saber de um e o saber do outro. O sujeito existe antes do encontro com ele e o saber dele precisa ser valorizado”.

O palestrante cita ainda exemplos de como Paulo Freire, ainda patrono da educação no Brasil, é mais valorizado fora do país. São muitos os pesquisadores que citam a contribuição dele, não só para a educação, mas para a saúde, para a assistência social e outros campos. O próprio Ministério da Saúde tinha, havia anos, a educação popular em saúde, uma iniciativa desmontada, que mostrava a amplitude da filosofia freiriana.

“Mas, o que fazer com essa filosofia? Onde se quer chegar?”, questiona Leo. Para responder, o palestrante explica, então, a diferença entre dialética e dialógica. Na dialética, o processo de produção de conhecimento se dá no encontro entre dois conhecimentos diferentes, que formam um terceiro e único, ou seja, a partir de uma tese e de uma antítese, se chega à síntese. Paulo Freire não apresenta a necessidade de um consenso final e sim de um diálogo entre saberes diferentes, que podem se completar e se alterar no encontro, ou não.

Considera que a história de cada um é diferente, o lugar de poder é diferente e, portanto, as formas de olhar, perceber e saber também são. “Como conviver com o diferente em tempos de polarização política, por exemplo? É preciso transparência para falar do seu lugar, o que esse lugar representa. Pensadores vienenses falavam que o conhecimento não é isento, é uma produção social, ideológica, não é neutro”, lembra Leo.

“Nós, na assistência social, temos nosso lugar de fala, nossa história e quando me abro pro outro, sou transparente, desvelo valores que influenciam na forma de lidar com o outro. A partir disso, podemos fazer combinados, com respeito ao que vai continuar sendo diferente, mas também pode se transformar no encontro”, explica.

A pedagogia libertadora de Paulo Freire parte, por isso, do respeito pelo outro na construção do saber, baseada no diálogo das diferenças e na soma de histórias, de formas de ver o mundo. A diferença deve ser um fator de união e não divisão, porque é na diferença que se baseia até mesmo a sobrevivência. Leo lembra da pandemia que vivemos. “Se todos nós fossemos iguais na forma de nos abater pela doença, quem intubaria quem?”

Os grupos de colaboradores foram convidados a debater sobre tudo isso em salas virtuais e muito se falou sobre a construção do conhecimento que não vem do diploma, do ensino formal, e de como a hierarquia imposta por critérios de escolaridade, pode bloquear o diálogo.

Para quem acompanhou todo o curso até agora, fica mais fácil entender porque a prática dialógica, proposta pelo filósofo Bakhtin, e a prática pedagógica de Freire convergem com as demais apresentadas, como a comunicação não violenta, a justiça restaurativa e a redução de danos. “Para Paulo Freire, ninguém educa ninguém, nem a si mesmo, mas do encontro com o outro pode surgir algo novo. Encontro que muitas vezes não é fácil, é um baita desafio”, termina Leo.

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